quarta-feira, 22 de julho de 2009

Questões sobre identidade.

O modelo clássico de construção da identidade que se construiu no ocidente desde muito tempo antes do período das grandes navegações é bem simples: o eu é construído através da negação do outro. A essência desse modelo é a negação, a diferenciação do outro como um não eu. Na história são vários os eventos que eternizam tal modelo identitário. No século XIX e início do XX, os EUA, logo após a independência, entram num longo período de isolamento que só vai terminar com a entrada do país na primeira guerra mundial em abril de 1917. Esse período de isolamento norte-americano foi decisivo pra que os pais fundadores daquele país estabelecessem os acontecimentos e valores fundadores dos EUA. O isolamento tinha um objetivo claro, evidenciado nos discursos dos congressistas e do próprio presidente Wilson na ocasião da entrada dos EUA na Primeira Grande Guerra: se diferenciar e se distanciar de seu passado “europeu”, ou seja, se distanciar de seu passado colonial. O isolamento do século XIX foi essencial para que os EUA entendessem que o eu norte-americano não era o eu europeu. Os EUA fundam sua própria identidade negando a identidade européia.

Na Europa o mesmo modelo encontra diversos exemplos históricos de sua eficácia social. É no século XIX que a racionalidade iluminista atinge seu auge e surge a teoria clássica do nacionalismo. A idéia de nação traz consigo a idéia de limites e fronteiras. Aqueles que vivem dentro dos limites de uma nação entendem a si mesmo como diferentes daqueles que vivem em outra nação. O comunicólogo argentino Néstor Garcia Canclini define identidade como “uma construção que se narra”. Continua ele: “(...) estabelecem-se acontecimentos fundadores, quase sempre relacionados à apropriação de um território por um povo ou à independência obtida através do enfrentamento dos estrangeiros. Vão se somando as façanhas em que os habitantes defendem esse território, ordenam seus conflitos e estabelecem os modos legítimos de convivência, a fim de se diferenciarem dos outros” (Canclini, 1995). Se no século XIX o iluminismo atinge seu auge e surgem as teorias positivistas da identidade, acarretando numa relação de negação do outro, é no século XX que esse modelo atinge suas principais e mais perversas conseqüências. As duas grandes guerras marcam eternamente esse modelo identitário. Em nome da identidade da nação milhões são mortos nos campos de batalha. Em nome da nação pais mandam seus filhos ou vão eles mesmos lutar contra seus vizinhos estrangeiros numa guerra que claramente visava a manutenção de identidades através da extinção de outras. O modelo clássico da negação se muniu de armas extremamente mortais a fim de fazer prevalecer a mais forte das identidades.

É justamente nesse momento histórico, o início do século passado e as duas grandes guerras, que mudamos o foco desse pequeno texto da política para as artes. Foram os artistas do início do século XX que revolucionaram a maneira de se narrar uma identidade. Os modernistas de uma forma geral, altamente influenciado pela filosofia extrema de Nietzsche, quebraram com a dualidade do modelo do século XIX e inauguraram o plural. A arte modernista não narra uma identidade que se formou a partir da negação de outra, mas sim identidades que surgem a partir da mistura de várias outras. A arte modernista revoluciona a arte de forma em geral justamente quando quebra com a dualidade simplória do nacionalismo positivista. É claro que o termo modernista é plural demais pra que se resumam diversas expressões artísticas num só termo, mas por mais diferentes que fossem os modernistas se aproximam pela sua raiz contestadora aos modelos sociais clássicos forjados no decorrer do século XIX, foram esses modelos que conduziram a sociedade ocidental para a matança e o desespero das guerras e de um mundo totalmente desencantado. Baudelaire, um dos mais importantes proto-modernistas, diz que o artista deve perseguir aquilo que ele chama de a “completude do universo”; Oscar Wilde luta, e morre lutando, por um mundo onde o moral burguesa – intimamente ligada ao modelo clássico da construção da identidade a partir da negação do outro – não limitasse a expressão artística. É Wilde quem dá sentido ao termo cunhado pelo francês Théophile Gautier “L'art pour l'art”. Os modernistas trazem para as artes o entendimento de que o homem é mais do que uma simples negação do outro.

A própria idéia de ego na arte modernista, seja ela literatura, fotografia, cinema ou artes plásticas, é marcada por digressões, paradoxos, pluralidades e rompimentos. James Joyce e Virgínia Wolf inauguram na literatura a forte presença do ser completo, mutável, às vezes perdido nas pluralidades de sua própria personalidade. Os personagens modernistas nunca são unicamente eu ou outro. André Breton e os surrealistas, um dos exemplos mais notáveis dessa mudança de paradigma identitário na arte ocidental, gritavam ao mundo que seu legado não era francês, espanhol ou alemão, mas sim universal, oriundo de todos e pertencente a todos. O cubismo de Picasso enxerga a si mesmo não somente na tradição artística ocidental, mas também na tradição das máscaras e da expressão africana. Por mais clichê que esse comentário possa ser, quando Picasso muda o foco de sua visão dos temas puramente europeus para os também africanos, ele subverte séculos e mais séculos de sua própria história. Uma única obra como Demoiselle d’Avignon pulveriza todo um passado de construção histórica que negava o outro. Picasso ao se deixar influenciar pelo outro africano fere o cerne da sociedade ocidental, obrigando o ocidente a lamber suas próprias feridas.

No entanto, nenhuma outra manifestação modernista foi tão subversiva e original quanto a Antropofagia brasileira. Oswald, Tarsila e Mario foram muito além dos europeus quando anunciaram que tudo que os europeus perseguiam como forma de representação artística existia no Brasil como verdade histórica e material. Tema caro ao modernismo foi a idéia de primitivo. Era uma forma que os europeus tinham de achar perdido dentro de seu próprio sujeito algo que sua sociedade tinha há muito tempo aniquilado: sua essência instintiva e natural. O modernismo visa o retorno do natural, do primitivo, do instintivo, ou seja, de tudo que o ocidente – e é importante incluir a nossa própria sociedade brasileira nessa idéia de ocidente – negou para construir a si mesmo. Rompendo de vez com a antiga identidade colonial e imperial brasileira, os antropofágicos abrem caminho para um entendimento de identidade muito mais antigo que a presença ocidental em terras brasileiras. O Brasil lusitano da colônia e do império nada fez de diferente do que os modelos clássicos propuseram. Os institutos históricos criados por Dom Pedro II em São Paulo, Pernambuco e Rio de Janeiro, nada mais eram do que institutos forjadores de uma identidade lusitana dentro do Brasil, excluindo ou subjugando a presença de negros, índios e outros imigrantes. A antropofagia quebra com isso. A metáfora da antropofagia é clara: o eu se constrói não a partir da negação do outro, mas a partir da assimilação daquele que não sou eu. É também importante identificar aquilo que Benedito Nunes identifica como o diagnóstico e a terapia proposta pela antropofagia. Os antropofágicos diagnosticaram a sociedade brasileira como ainda refém da servilitude do passado colonial (a identidade lusitana) e como terapia para ultrapassarmos esse patético status-quo seria necessário uma total reeducação da sensibilidade que anunciaria uma nova identidade puramente brasileira, mas também universal. Os índios comiam seu inimigo para se apoderar da força inimiga e por fim vencê-lo, mas não exterminá-lo, já que o derrotado ainda existiria dentro do vencido. A metáfora, além de ser de uma poética revolucionária, é decisiva para a quebra do modelo clássico de identidade forjado pela racionalidade iluminista representado no Brasil pelo passado colonial e pelos institutos históricos do Império positivista de Dom Pedro II. Se os EUA tiveram seu período de isolamento concretizando historicamente o modelo clássico de construção de identidade, o Brasil teve seu período antropofágico.

Nesse pequeno texto tentei mostrar que a idéia de identidade nasce a partir de uma necessidade clara de se construir a si mesmo negando o outro, mas no século passado, movido por uma intensa insatisfação, esse paradigma foi quebrado por artistas que hoje damos a eles o nome de modernistas. Mais que nenhum outro movimento artístico foram os antropofágicos quem mais revolucionaram a forma de se entender o conceito de identidade invertendo a idéia de negação para a idéia de banquete. No entanto, esse movimento de mudança paradigmática é simplesmente algo histórico, importante para a formação da base do que todos nós somos. A antropofagia e o modernismo brasileiro têm um papel importante na formação da sociedade brasileira como a vivemos hoje. Pra entender esse papel é só lembrar que foi do modernismo de 1922 que surgiu a base daquilo que virá a se tornar o pensamento de esquerda brasileiro. Mas daqui pra frente a história ainda não foi escrita, e cabe a nós escrevê-la. Sendo assim, termino esse texto não com uma defesa do modelo clássico ou modernista de construção identitária. Tendo apresentado brevemente a transformação histórica que passa a idéia de identidade, cabe agora perguntar o que significa para os artistas reunidos dentro da confraria a idéia de identidade. Na cabeça de todos há um entendimento diferente quando se diz que é importante que se ache uma identidade e que essa identidade tem de passar pela coletividade. Como será possível achar uma coletividade num grupo de artistas que ainda não se conhecem totalmente? Será que essa identidade a ser construída tem de passar pela individualidade de cada um, e assim ser marcada pela pluralidade? Que modelo deverá surgir das nossas reuniões para que no futuro possamos entender o que vem a ser a identidade da confraria?

ZuZu (Sérgio Veloso)

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